Um homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida
E vida é trabalho
E sem o seu trabalho
Um homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata
Não dá pra ser feliz
(Gonzaguinha)
Em minuciosa reportagem sobre as causas do desemprego, publicada no dia oito de fevereiro de 2010, portanto, logo após a grave crise econômica de 2008/2009, o jornal Correio Braziliense fez o seguinte relato:
“As estatísticas mostram que a situação se agravou mais rapidamente naqueles países com legislação trabalhista mais flexível – que permite a contratação de temporários com baixo nível de direitos empregatícios e facilita a demissão. É o caso, principalmente, de Espanha, Irlanda e Estados Unidos. Estudo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) revela que, em novembro de 2009, o desemprego na Espanha alcançou 19,4%, número 5,4 ponto percentual acima do registrado um ano antes. Na Irlanda, a alta foi de 5,2 ponto percentual, atingindo 12,9%. E, nos Estados Unidos, o aumento foi de 3,1 ponto percentual, chegando a 10%. Em compensação, em países com leis trabalhistas mais pró-empregados, a evolução do desemprego foi mais lenta. Caso da Alemanha, com 0,5 ponto percentual acima do número de um ano atrás, alcançando 7,6% de desemprego em novembro. Da Itália – expansão de 1,2 ponto percentual – com 8,3% de desemprego no penúltimo mês do ano passado. E França, com 1,7 ponto percentual de aumento, atingindo 10%. Na Noruega, onde o governo, em janeiro de 2009, adotou medidas de proteção ao emprego, o índice evoluiu 0,4 ponto percentual em relação a outubro de 2008, registrando 3,2% em outubro do ano passado”.
O exemplo espanhol é emblemático por ser o país europeu que mais “flexibilizou” sua lei trabalhista nas últimas décadas. A dita “flexibilização” teve como consequência um dos mais altos índices de desemprego da Europa (26,8%), além da taxa de 34% de contratação temporária, sobretudo entre jovens, mulheres e profissionais menos qualificados, acentuando a precarização nas relações de trabalho. São trabalhadores que trabalham mais, ganham menos e não gozam de quase nenhuma proteção.
À semelhança do Brasil, onde os terceirizados recebem salário 24,7% menor do que o dos empregados diretos, trabalham 7,5% a mais (3.horas semanais) e ainda ficam menos da metade de tempo no emprego. Segundo estudo do Dieese, “a média de permanência dos terceirizados no emprego é de 2,6 anos, enquanto a do trabalhador direto é de 5,8 anos. A rotatividade é de 44,9% entre os terceirizados e de 22% entre os contratados diretamente. Isso resulta em problemas para os trabalhadores, prejudica sua formação profissional e ainda gera mais gastos para o FAT (Fundo de Amparo do Trabalhador), pois aumenta os custos com seguro desemprego”.
No Chile, após a reforma trabalhista de 1979, ainda na ditadura de Pinochet, o desemprego aumentou persistentemente, atingindo o elevado índice de 20%. Na Argentina, o processo de flexibilização, iniciado em 1991, no governo Menem, teve como resultado o aumento do desemprego, que atingiu cerca de 20% da população, e da contratação precária, que chegou a 85% anuais [2]. Mesmo diante de tantas evidências em contrário, os órfãos de Breton Woods insistem em mais “flexibilização”, como alguém que adoece por tomar um veneno pensando que é remédio e, depois, tenta se curar aumentando a dose.
Não é muito difícil de entender o porquê da “flexibilização” ser tão danosa para o mercado de trabalho. Quanto mais fácil ou mais barato for demitir um empregado, maior será o número de demissões porque o custo da dispensa para o empregador será menor. Assim, ao primeiro sinal de retração da economia, a dispensa de funcionários será a opção mais óbvia para o empresário reduzir as suas despesas, principalmente no caso da mão-de-obra menos qualificada. Da mesma forma, se o empregador puder exigir uma jornada de trabalho maior pagando o mesmo salário, é evidente que ele não contratará mais trabalhadores para atender à sua demanda, o que serve como um desestímulo para novas contratações.
Daí por que, se quisermos, de fato, combater o desemprego, devemos pensar em redução da jornada, e não em aumento, lembrando que os próprios empregadores seriam beneficiados com um aumento da produtividade laboral, conforme demonstra a bem-sucedida experiência da cidade sueca de Gotemburgo.
A história recente revela que, em um primeiro momento, a “desregulamentação” pode levar os mercados à euforia, porém, mais adiante, a economia real se impõe e resulta em um ciclo vicioso de desemprego e recessão. Quanto menor a renda média dos trabalhadores, menor será o consumo. Diminuindo o consumo, cairá também a produção e, por consequência, a geração de novos postos de trabalho também fica comprometida. Sem renda, sem consumo, sem produção.
Em entrevista reproduzida na revista da Unisinos, a historiadora Ana Tércia Sanches ressalta que:
“Os empresários, toda vez que pensam em terceirização e na revisão da CLT, usam um falso discurso, que é o da modernidade”. Para ela, esse discurso normalmente vem acoplado à ideia de que a terceirização gera emprego. “Tudo isso é mentira e não se sustenta nem técnica nem empiricamente, tampouco pelas estatísticas. Essa é uma reforma trabalhista às avessas porque é o contrário do que os empresários dizem, de que é moderna, que gera mais empregos”. Segundo a historiadora, na verdade, ela é uma reforma que, pelas medidas que podem ser tomadas pelas empresas e pela forma de gerir o capital (fazer gestão das organizações através da terceirização), consegue atender aos interesses dos empresários, visando redução de custos, mas fazendo isso a custa dos trabalhadores, porque as margens de lucro se mantêm bastante elevadas. “Então, o que vemos é um favorecimento dos empresários, que conseguem ter mais acúmulos de poder, rentabilidade e lucratividade, em detrimento dos trabalhadores, que empobrecem”.
Por sua vez, em artigo escrito para a Revista do TST, em julho de 2014, após demonstrar as evidências estatísticas da precarização do emprego diante da terceirização, o economista Márcio Pochmann concluiu que:
“O estudo identificou que um dos principais efeitos da terceirização desregulada nas atividades-meio sobre o funcionamento do mercado de trabalho foi a contenção de 24,5% na capacidade de emprego do segmento interno de contratação de mão de obra no Brasil. Em contrapartida, generalizou-se o emprego no mercado geral de trabalho, cujas condições e relações de trabalho apresentaram-se inferiores às anteriormente existentes no segmento interno. Em havendo a ampliação ainda mais desregulada da terceirização para as atividades-fim, o risco apontado será o de aniquilamento do segmento interno do mercado de trabalho no país. Suas consequências apontam para o reforço ainda maior de uma economia de baixo salário, elevada instabilidade nas relações de trabalho e ampla polarização social.”
O argumento de que o custo do trabalho no Brasil é mais elevado do que em outros países, comprometendo a produtividade das nossas empresas, também é falacioso, partindo de uma premissa equivocada: a de que todo o valor pago pelo empregador configura custo da mão-de-obra ou “benefício trabalhista”.
Na verdade, a própria forma de se calcular o CUT – Custo Unitário do Trabalho, é extremamente polêmica, estando o debate contaminado por interesses econômicos e opções ideológicas. De um lado, as confederações empresariais se apegam ao método do Professor José Pastore, consultor da Fiesp, para quem “o Brasil é um país de encargos altos e salários baixos, o que faz o trabalhador receber pouco e custar muito para a empresa”. Pastore alega que um trabalhador contratado por R$ 1.000 custaria R$ 2.020 para o empregador por conta dos encargos sociais, conforme exemplificado no modelo abaixo:
Entretanto, o DIEESE e o CESIT (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho) da Unicamp adotam um critério completamente diferente, defendendo que o peso dos encargos sociais é de apenas 25,1 % sobre a remuneração total do trabalhador. Por esse raciocínio, salário é a remuneração total recebida integral e diretamente pelo trabalhador como contraprestação pelo seu serviço ao empregador. A remuneração, define o estudo, é dividida em salário contratual recebido mensalmente, inclusive nas férias, o salário diferido (ou adiado), recebido uma vez a cada ano (13º salário e 1/3 de férias) e o salário recebido eventualmente (FGTS e outras verbas rescisórias).
A partir dessa avaliação, dentro de um custo total do trabalho de R$ 1.538, R$1.229,11 corresponderiam à remuneração total e somente R$ 308,89 aos encargos sociais, muito aquém dos 102% do cálculo de Pastore. O restante são tributos recolhidos para o governo e para terceiros, como, por exemplo, para financiar a Previdência Social e os programas educacionais, sobretudo do sistema S (por exemplo, Senai, Senac). Não têm, portanto, qualquer relação direta com a “legislação trabalhista” em sentido estrito, ou seja, não são benefícios recebidos pelo trabalhador. Ademais, o investimento em qualificação profissional interessa aos próprios empresários, que se beneficiam de uma mão-de-obra mais produtiva. O quadro abaixo, elaborado pelos economistas do IPEA, ajudam a entender essa distinção fundamental:
Essa discrepância metodológica foi criteriosamente analisada, em um estudo do IPEA, pelos economistas Eduardo G. Noronha, Fernanda De Negri e Karen Artur, os quais observaram que:
“Aliado à análise estatística, sustentamos que o exame do tema exige a compreensão de elementos consideravelmente mais complexos do que está suposto nas teses que advogam a relação de “soma zero” entre custos ou encargos trabalhistas e competitividade. Em primeiro lugar, sabe-se que o patamar salarial do Brasil é consideravelmente inferior à maioria dos competidores em produtos de maior valor agregado, o que reduz o eventual impacto negativo de uma proporção elevada de encargos baseados na folha salarial. Além disso, mesmo considerando apenas o volume de encargos sobre o salários, não há evidências de que os encargos no Brasil estejam acima dos padrões internacionais ocidentais. Argumentamos também que a comparabilidade dos custos trabalhistas entre países é bastante precária, não só devido a questões técnicas e metodológicas relativas à forma como os dados são coletados mas, principalmente pela forma como são financiados os direitos sociais e do trabalho. Países de tradição universalista nos direitos sociais e contratualista nas relações de trabalho têm encargos (definidos por legislação nacional) inferiores aos países de tradição legislada e de welfare ocupacional.”
Diante dessa constatação, os economistas concluíram que:
“Enfim, a redução de custos indiretos da folha salarial provavelmente não é a melhor opção num país no qual boa parte dos serviços essenciais, inclusive para as classes médias, são providos através de encargos sobre o trabalho: os melhores exemplos são o FGTS, os planos de saúde, o vale-transporte e o seguro-desemprego. O problema do modelo brasileiro de garantias trabalhistas e sociais não está no suposto desestímulo à competitividade das empresas, mas na exclusão, induzida pelo modelo, da grande parcela de trabalhadores (e de empresas) que atuam no mercado informal. Posto que a informalidade predomina nas pequenas empresas de baixa produtividade, o desafio em termos de políticas públicas é a redução da informalidade com sistemas de incentivo à transição da informalidade à formalidade. Políticas nesse sentido seriam essenciais tanto para o incentivo à produção das pequenas empresas, para os arranjos produtivos locais (APLs) e para a geração de empregos mais estáveis e menos precários quanto para o atendimento das necessidades sociais dos trabalhadores de baixa renda – mas essa é outra matéria a ser enfrentada pelos pesquisadores e formuladores de políticas públicas. Enfim, o tema “custos do trabalho” é mais relevante para a avaliação do modelo de proteção social no Brasil, de sua forma de financiamento e de sua incapacidade de reduzir a informalidade, do que para discutirmos competitividade das empresas.”
Embora não seja recomendado comparar o custo de mão-de-obra em países com indicadores sociais tão discrepantes, os arautos da reforma trabalhista insistem em fazê-lo, razão pela qual também não fugiremos desse debate. É evidente que essa comparação sempre será afetada pela variável cambial, mas um estudo do DIEESE, em nota técnica sobre a proposta de redução da jornada de trabalho, demonstra que o valor-hora no Brasil é, historicamente, bem inferior a de outros países considerados desenvolvidos, conforme tabela abaixo:
Como se vê, são, nos mínimo, questionáveis os dois principais argumentos usados pelos defensores da reforma trabalhista porque, primeiro, “flexibilizar a lei”, reduzindo direitos, não é garantia de geração de empregos e, segundo, o verdadeiro custo da mão-de-obra no Brasil é muito inferior ao alegado pelos detratores do Direito do Trabalho.
Em outro texto publicado no “Justificando”, já havíamos sustentado que a supressão ou a redução desproporcional dos direitos trabalhistas seria manifestamente inconstitucional, por violar cláusulas pétreas e ferir o princípio que veda o retrocesso social. Porém, se não bastasse o argumento jurídico, as evidências econômicas também desmontam a tese de que reduzir direitos gera empregos, não havendo qualquer relação direta entre flexibilização e empregabilidade. Muito pelo contrário.
A história recente indica que são valores inversamente proporcionais, ou seja, quanto mais flexível é a legislação trabalhista de um país, maior a taxa de rotatividade da mão-de-obra e, portanto, maior a taxa de desemprego, sem contar a redução da base salarial e a precarização das condições de trabalho. Portanto, a resistência a essa “reforma trabalhista”, que pretende liberar a terceirização irrestrita e fazer com que “o negociado prevaleça sobre o legislado”, não é apenas uma questão de discurso ideológico, mas sim um imperativo econômico, com o propósito de se defender o bem-estar social e a geração de empregos.
Renato da Fonseca Janon é Juiz Titular da 2ª Vara do Trabalho de São Carlos