segunda-feira, 27 de março de 2017

Trabalho escravo no DF
Associação de agricultores e comissão parlamentar acusaram, em 2005, empresa de escravizar operários em núcleo rural do Gama, onde até mão-de-obra infantil era explorada


Domingos Batista de Souza, de 64 anos, está cego. Nicanor Machado da Silva, 74, enxerga apenas com o olho direito. Aos 55 anos, Vespasiano Ribeiro dos Santos é outro que não pode mais trabalhar devido à debilidade do estado de saúde. Além da perda da visão, atribuída ao trabalho, eles carregam outra marca. Os três afirmam que foram vítimas de trabalho escravo a 40 quilômetros de Brasília. Acusam o arrendatário de uma fazenda no Núcleo Rural Ponte Alta, no Gama, de maltratá-los durante os anos em que trabalharam em uma olaria que funcionava até 1994 na propriedade rural.

De acordo com os funcionários, o pagamento da jornada semanal de mais de 20 horas por dia era feito em vales. Mercearias e dois supermercados do Gama recebiam o papel branco, com a assinatura do patrão, em troca de mercadorias. Esses estabelecimentos não existem mais.

Em 1994, a fábrica foi fechada. Desde então, 16 famílias lutam na Justiça. Mas temem pela vida. "Eles são ameaçados de morte pelo dono", acusa Erika Kokai, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, Cidadania, Ética e Decoro Parlamentar da Câmara Legislativa do DF.

A denúncia chegou a ela em julho deste ano. Na ocasião, uma comissão formada pela Associação dos Trabalhadores na Agricultura (Atagg-DF) e pela Comissão dos Direitos Humanos da Câmara Legislativa vistoriou a Fazenda Tamanduá, onde funcionou a olaria denominada Cerâmica Santa Maria Indústria e Comércio Ltda., de propriedade de Gilmar Luiz Borges. Segundo o relatório da inspeção, foram constatadas várias irregularidades.

Arrendatário se declara inocente

O procurador regional do Trabalho Alessandro Santos de Miranda e a secretária de Articulação do Fórum dos Direitos da Criança e do Adolescente, Milda Moraes, acompanharam ontem uma nova visita da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara Legislativa e Atagg à Fazenda Tamanduá. Além de denúncias de trabalho operário escravo, eles foram verificar a existência de outro tipo de crime de que se tem notícia na propriedade: o trabalho infantil. Mas não houve flagrante.

O arrendatário da terra, Gilmar Luiz Borges, foi à fazenda no final da manhã, acompanhado da mulher, Francinete. Ao procurador, negou as acusações. Disse que depois que a empresa fechou as portas os operários nunca mais trabalharam para ele. Solicitado a apresentar documentos que comprovassem a afirmação, pediu prazo. "Tenho como provar. Sempre os paguei (os operários) com dinheiro", disse. O procurador Alessandro Santos determinou que em 24 horas ele apresente a documentação à Procuradoria Regional do Trabalho. "Se se comprovar que eles continuaram trabalhando para o mesmo dono da fazenda depois do fechamento da empresa, que adotou outra atividade econômica, caberá uma ação civil pública ou até mesmo ações individuais, que vão garantir o recebimento de indenização", explicou o procurador. "O fato de eles serem obrigados a gastar o pagamento no supermercado indicado pelo patrão pode caracterizar no trabalho escravo. Mas compete ao Ministério Público investigar", acrescentou. A denúncia foi encaminhada ao MPDFT.

Pagamento em vales 

Domingos Batista e Nicanor Machado afirmam ter contraído a deficiência visual durante o tempo em que trabalharam na olaria. "Eu tinha um problema nas vistas. Uma vez, fui juntar palha e aquela poeira vinha no meu rosto. À noite, eu não dormia. Daí para cá fui perdendo a visão", afirma Domingos. Ele começou a trabalhar na olaria em 1970. Diz que nunca recebeu salário. O pagamento era em forma de vales, que descontavam em supermercado indicado pelo patrão. "Dava mal para comprar uma caixa de ovos. Já passei fome aqui", conta. Os vales foram suspensos quando o negócio fechou. Porém, Domingos continuou trabalhando sem ser remunerado, conforme denunciou. "No ano passado eu parei de trabalhar porque não recebia nada. A partir de então, ele (o patrão) passou a me perseguir", disse.

Nicanor Machado assegura ter recebido de Gilmar a promessa de que seria o único a permanecer na fazenda depois que a olaria foi fechada, desde que trabalhasse de graça. Com o surgimento da deficiência em seu olho esquerdo, porém, o patrão teria mudado de idéia, dispensando-o em 2002, sem acerto financeiro.

Segundo Nicanor, por ter se recusado a sair da casa simples que ocupa desde 1977, o proprietário passou a retaliá-lo. Desempregado, ele vive hoje da ajuda dos filhos. Outras famílias que estão na Fazenda Tamanduá também reclamam. Mauro Lúcio dos Santos, 35, tem um filho menor e acusa o antigo patrão de explorar o menino. "Ele deixava de ir para o colégio e ficava recolhendo adubo. Recebia dez centavos por saco (de adubo)".